quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO PARA A CELEBRAÇÃO DO XLVIII DIA MUNDIAL DA PAZ

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO
PARA A CELEBRAÇÃO DO XLVIII DIA MUNDIAL DA PAZ
1º de janeiro de 2015
JÁ NÃO ESCRAVOS, MAS IRMÃOS
1. No início de um novo ano, que acolhemos como uma graça e um dom de Deus para a humanidade, desejo dirigir, a cada homem e mulher, bem como a todos os povos e nações do mundo, aos chefes de Estado e de Governo e aos responsáveis das várias religiões, os meus ardentes votos de paz, que acompanho com a minha oração a fim de que cessem as guerras, os conflitos e os inúmeros sofrimentos provocados quer pela mão do homem quer por velhas e novas epidemias e pelos efeitos devastadores das calamidades naturais. Rezo de modo particular para que, respondendo à nossa vocação comum de colaborar com Deus e com todas as pessoas de boa vontade para a promoção da concórdia e da paz no mundo, saibamos resistir à tentação de nos comportarmos de forma não digna da nossa humanidade.
Já, na minha mensagem para o 1º de Janeiro passado, fazia notar que «o anseio de uma vida plena (…) contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à comunhão com os outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos acolher e abraçar».[1] Sendo o homem um ser relacional, destinado a realizar-se no contexto de relações interpessoais inspiradas pela justiça e a caridade, é fundamental para o seu desenvolvimento que sejam reconhecidas e respeitadas a sua dignidade, liberdade e autonomia. Infelizmente, o flagelo generalizado da exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão e a vocação a tecer relações interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a caridade. Tal fenômeno abominável, que leva a espezinhar os direitos fundamentais do outro e a aniquilar a sua liberdade e dignidade, assume múltiplas formas sobre as quais desejo deter-me, brevemente, para que, à luz da Palavra de Deus, possamos considerar todos os homens, «já não escravos, mas irmãos».
À escuta do projeto de Deus para a humanidade
2. O tema, que escolhi para esta mensagem, inspira-se na Carta de São Paulo a Filemon; nela, o Apóstolo pede ao seu colaborador para acolher Onésimo, que antes era escravo do próprio Filemon mas agora tornou-se cristão, merecendo por isso mesmo, segundo Paulo, ser considerado um irmão. Escreve o Apóstolo dos gentios: «Ele foi afastado por breve tempo, a fim de que o recebas para sempre, não já como escravo, mas muito mais do que um escravo, como irmão querido» (Flm 15-16). Tornando-se cristão, Onésimo passou a ser irmão de Filemon. Deste modo, a conversão a Cristo, o início de uma vida de discipulado em Cristo constitui um novo nascimento (cf. 2 Cor 5, 17; 1 Ped 1, 3), que regenera a fraternidade como vínculo fundante da vida familiar e alicerce da vida social.
Lemos, no livro do Gênesis (cf. 1, 27-28), que Deus criou o ser humano como homem e mulher e abençoou-os para que crescessem e se multiplicassem: a Adão e Eva, fê-los pais, que, no cumprimento da bênção de Deus para ser fecundos e multiplicar-se, geraram a primeira fraternidade: a de Caim e Abel. Saídos do mesmo ventre, Caim e Abel são irmãos e, por isso, têm a mesma origem, natureza e dignidade de seus pais, criados à imagem e semelhança de Deus.
Mas, apesar de os irmãos estarem ligados por nascimento e possuírem a mesma natureza e a mesma dignidade, a fraternidade exprime também a multiplicidade e a diferença que existe entre eles. Por conseguinte, como irmãos e irmãs, todas as pessoas estão, por natureza, relacionadas umas com as outras, cada qual com a própria especificidade e todas partilhando a mesma origem, natureza e dignidade. Em virtude disso, a fraternidade constitui a rede de relações fundamentais para a construção da família humana criada por Deus.
Infelizmente, entre a primeira criação narrada no livro do Gênesis e o novo nascimento em Cristo – que torna, os crentes, irmãos e irmãs do «primogênito de muitos irmãos» (Rom 8, 29) –, existe a realidade negativa do pecado, que interrompe tantas vezes a nossa fraternidade de criaturas e deforma continuamente a beleza e nobreza de sermos irmãos e irmãs da mesma família humana. Caim não só não suporta o seu irmão Abel, mas mata-o por inveja, cometendo o primeiro fratricídio. «O assassinato de Abel por Caim atesta, tragicamente, a rejeição radical da vocação a ser irmãos. A sua história (cf. Gen 4, 1-16) põe em evidência o difícil dever, a que todos os homens são chamados, de viver juntos, cuidando uns dos outros».[2]
Também na história da família de Noé e seus filhos (cf. Gen 9, 18-27), é a falta de piedade de Caim para com seu pai, Noé, que impele este a amaldiçoar o filho irreverente e a abençoar os outros que o tinham honrado, dando assim lugar a uma desigualdade entre irmãos nascidos do mesmo ventre.
Na narração das origens da família humana, o pecado de afastamento de Deus, da figura do pai e do irmão torna-se uma expressão da recusa da comunhão e traduz-se na cultura da servidão (cf. Gen 9, 25-27), com as consequências daí resultantes que se prolongam de geração em geração: rejeição do outro, maus-tratos às pessoas, violação da dignidade e dos direitos fundamentais, institucionalização de desigualdades. Daqui se vê a necessidade de uma conversão contínua à Aliança levada à perfeição pela oblação de Cristo na cruz, confiantes de que, «onde abundou o pecado, superabundou a graça (…) por Jesus Cristo» (Rom 5, 20.21). Ele, o Filho amado (cf. Mt 3, 17), veio para revelar o amor do Pai pela humanidade. Todo aquele que escuta o Evangelho e acolhe o seu apelo à conversão, torna-se, para Jesus, «irmão, irmã e mãe» (Mt 12, 50) e, consequentemente, filho adotivo de seu Pai (cf. Ef 1, 5).
No entanto, os seres humanos não se tornam cristãos, filhos do Pai e irmãos em Cristo por imposição divina, isto é, sem o exercício da liberdade pessoal, sem se converterem livremente a Cristo. Ser filho de Deus requer que primeiro se abrace o imperativo da conversão: «Convertei-vos – dizia Pedro no dia de Pentecostes – e peça cada um o batismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados; recebereis, então, o dom do Espírito Santo» (Act 2, 38). Todos aqueles que responderam com a fé e a vida àquela pregação de Pedro, entraram na fraternidade da primeira comunidade cristã (cf. 1 Ped 2, 17; Act 1, 15.16; 6, 3; 15, 23): judeus e gregos, escravos e homens livres (cf. 1 Cor 12, 13; Gal 3, 28), cuja diversidade de origem e estado social não diminui a dignidade de cada um, nem exclui ninguém do povo de Deus. Por isso, a comunidade cristã é o lugar da comunhão vivida no amor entre os irmãos (cf. Rom 12, 10; 1 Tes 4, 9; Heb 13, 1; 1 Ped 1, 22; 2 Ped 1, 7).
Tudo isto prova como a Boa Nova de Jesus Cristo – por meio de Quem Deus «renova todas as coisas» (Ap 21, 5)[3] – é capaz de redimir também as relações entre os homens, incluindo a relação entre um escravo e o seu senhor, pondo em evidência aquilo que ambos têm em comum: a filiação adotiva e o vínculo de fraternidade em Cristo. O próprio Jesus disse aos seus discípulos: «Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (Jo 15, 15).
As múltiplas faces da escravatura, ontem e hoje
3. Desde tempos imemoriais, as diferentes sociedades humanas conhecem o fenômeno da sujeição do homem pelo homem. Houve períodos na história da humanidade em que a instituição da escravatura era geralmente admitida e regulamentada pelo direito. Este estabelecia quem nascia livre e quem, pelo contrário, nascia escravo, bem como as condições em que a pessoa, nascida livre, podia perder a sua liberdade ou recuperá-la. Por outras palavras, o próprio direito admitia que algumas pessoas podiam ou deviam ser consideradas propriedade de outra pessoa, a qual podia dispor livremente delas; o escravo podia ser vendido e comprado, cedido e adquirido como se fosse uma mercadoria qualquer.
Hoje, na sequência de uma evolução positiva da consciência da humanidade, a escravatura – delito de lesa humanidade[4] – foi formalmente abolida no mundo. O direito de cada pessoa não ser mantida em estado de escravidão ou servidão foi reconhecido, no direito internacional, como norma inderrogável.
Mas, apesar de a comunidade internacional ter adotado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este fenômeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura.
Penso em tantos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da indústria manufatureira à mineração, tanto nos países onde a legislação do trabalho não está conforme às normas e padrões mínimos internacionais, como – ainda que ilegalmente – naqueles cuja legislação protege o trabalhador.
Penso também nas condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajeto dramático, padecem a fome, são privados da liberdade, despojados dos seus bens ou abusados física e sexualmente. Penso em tantos deles que, chegados ao destino depois de uma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em condições às vezes desumanas. Penso em tantos deles que diversas circunstâncias sociais, políticas e econômicas impelem a passar à clandestinidade, e naqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de trabalho… Sim! Penso no «trabalho escravo».
Penso nas pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, e nas escravas e escravos sexuais; nas mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido, sem que tenham o direito de dar ou não o próprio consentimento.
Não posso deixar de pensar a quantos, menores e adultos, são objeto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes, para atividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adoção internacional.
Penso, enfim, em todos aqueles que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objetivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos deles desaparecem, alguns são vendidos várias vezes, torturados, mutilados ou mortos.
Algumas causas profundas da escravatura
4. Hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma concepção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objeto. Quando o pecado corrompe o coração do homem e o afasta do seu Criador e dos seus semelhantes, estes deixam de ser sentidos como seres de igual dignidade, como irmãos e irmãs em humanidade, passando a ser vistos como objetos. Com a força, o engano, a coação física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim.
Juntamente com esta causa ontológica – a rejeição da humanidade no outro –, há outras causas que concorrem para se explicar as formas atuais de escravatura. Entre elas, penso em primeiro lugar na pobreza, no subdesenvolvimento e na exclusão, especialmente quando os três se aliam com a falta de acesso à educação ou com uma realidade caracterizada por escassas, se não mesmo inexistentes, oportunidades de emprego. Não raro, as vítimas de tráfico e servidão são pessoas que procuravam uma forma de sair da condição de pobreza extrema e, dando crédito a falsas promessas de trabalho, caíram nas mãos das redes criminosas que gerem o tráfico de seres humanos. Estas redes utilizam habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo.
Entre as causas da escravatura, deve ser incluída também a corrupção daqueles que, para enriquecer, estão dispostos a tudo. Na realidade, a servidão e o tráfico das pessoas humanas requerem uma cumplicidade que muitas vezes passa através da corrupção dos intermediários, de alguns membros das forças da polícia, de outros atores do Estado ou de variadas instituições, civis e militares. «Isto acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro, e não o homem, a pessoa humana. Sim, no centro de cada sistema social ou econômico, deve estar a pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o dominador do universo. Quando a pessoa é deslocada e chega o deus dinheiro, dá-se esta inversão de valores».[5]
Outras causas da escravidão são os conflitos armados, as violências, a criminalidade e o terrorismo. Há inúmeras pessoas raptadas para ser vendidas, recrutadas como combatentes ou exploradas sexualmente, enquanto outras se vêem obrigadas a emigrar, deixando tudo o que possuem: terra, casa, propriedades e mesmo os familiares. Estas últimas, impelidas a procurar uma alternativa a tão terríveis condições, mesmo à custa da própria dignidade e sobrevivência, arriscam-se assim a entrar naquele círculo vicioso que as torna presa da miséria, da corrupção e das suas consequências perniciosas.
Um compromisso comum para vencer a escravatura
5. Quando se observa o fenômeno do comércio de pessoas, do tráfico ilegal de migrantes e de outras faces conhecidas e desconhecidas da escravidão, fica-se frequentemente com a impressão de que o mesmo tem lugar no meio da indiferença geral.
Sem negar que isto seja, infelizmente, verdade em grande parte, apraz-me mencionar o enorme trabalho que muitas congregações religiosas, especialmente femininas, realizam silenciosamente, há tantos anos, a favor das vítimas. Tais institutos atuam em contextos difíceis, por vezes dominados pela violência, procurando quebrar as cadeias invisíveis que mantêm as vítimas presas aos seus traficantes e exploradores; cadeias, cujos elos são feitos não só de subtis mecanismos psicológicos que tornam as vítimas dependentes dos seus algozes, através de chantagem e ameaça a eles e aos seus entes queridos, mas também através de meios materiais, como a apreensão dos documentos de identidade e a violência física. A atividade das congregações religiosas está articulada a três níveis principais: o socorro às vítimas, a sua reabilitação sob o perfil psicológico e formativo e a sua reintegração na sociedade de destino ou de origem.
Este trabalho imenso, que requer coragem, paciência e perseverança, merece o aplauso da Igreja inteira e da sociedade. Naturalmente o aplauso, por si só, não basta para se pôr termo ao flagelo da exploração da pessoa humana. Faz falta também um tríplice empenho a nível institucional: prevenção, proteção das vítimas e ação judicial contra os responsáveis. Além disso, assim como as organizações criminosas usam redes globais para alcançar os seus objetivos, assim também a ação para vencer este fenômeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes atores que compõem a sociedade.
Os Estados deveriam vigiar para que as respectivas legislações nacionais sobre as migrações, o trabalho, as adoções, a transferência das empresas e a comercialização de produtos feitos por meio da exploração do trabalho sejam efetivamente respeitadoras da dignidade da pessoa. São necessárias leis justas, centradas na pessoa humana, que defendam os seus direitos fundamentais e, se violados, os recuperem reabilitando quem é vítima e assegurando a sua incolumidade, como são necessários também mecanismos eficazes de controle da correta aplicação de tais normas, que não deixem espaço à corrupção e à impunidade. É preciso ainda que seja reconhecido o papel da mulher na sociedade, intervindo também no plano cultural e da comunicação para se obter os resultados esperados.
As organizações intergovernamentais são chamadas, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, a implementar iniciativas coordenadas para combater as redes transnacionais do crime organizado que gerem o mercado de pessoas humanas e o tráfico ilegal dos migrantes. Torna-se necessária uma cooperação em vários níveis, que englobe as instituições nacionais e internacionais, bem como as organizações da sociedade civil e do mundo empresarial.
Com efeito, as empresas[6] têm o dever não só de garantir aos seus empregados condições de trabalho dignas e salários adequados, mas também de vigiar para que não tenham lugar, nas cadeias de distribuição, formas de servidão ou tráfico de pessoas humanas. A par da responsabilidade social da empresa, aparece depois a responsabilidade social do consumidor. Na realidade, cada pessoa deveria ter consciência de que «comprar é sempre um ato moral, para além de econômico».[7]
As organizações da sociedade civil, por sua vez, têm o dever de sensibilizar e estimular as consciências sobre os passos necessários para combater e erradicar a cultura da servidão.
Nos últimos anos, a Santa Sé, acolhendo o grito de sofrimento das vítimas do tráfico e a voz das congregações religiosas que as acompanham rumo à libertação, multiplicou os apelos à comunidade internacional pedindo que os diversos atores unam os seus esforços e cooperem para acabar com este flagelo.[8] Além disso, foram organizados alguns encontros com a finalidade de dar visibilidade ao fenômeno do tráfico de pessoas e facilitar a colaboração entre os diferentes atores, incluindo peritos do mundo acadêmico e das organizações internacionais, forças da polícia dos diferentes países de origem, trânsito e destino dos migrantes, e representantes dos grupos eclesiais comprometidos em favor das vítimas. Espero que este empenho continue e se reforce nos próximos anos.
Globalizar a fraternidade, não a escravidão nem a indiferença
6. Na sua atividade de «proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade»,[9] a Igreja não cessa de se empenhar em ações de carácter caritativo guiada pela verdade sobre o homem. Ela tem o dever de mostrar a todos o caminho da conversão, que induz a voltar os olhos para o próximo, a ver no outro – seja ele quem for – um irmão e uma irmã em humanidade, a reconhecer a sua dignidade intrínseca na verdade e na liberdade, como nos ensina a história de Josefina Bakhita, a Santa originária da região do Darfur, no Sudão. Raptada por traficantes de escravos e vendida a patrões desalmados desde a idade de nove anos, haveria de tornar-se, depois de dolorosas vicissitudes, «uma livre filha de Deus» mediante a fé vivida na consagração religiosa e no serviço aos outros, especialmente aos pequenos e fracos. Esta Santa, que viveu a cavalo entre os séculos XIX e XX, é também hoje testemunha exemplar de esperança[10] para as numerosas vítimas da escravatura e pode apoiar os esforços de quantos se dedicam à luta contra esta «ferida no corpo da humanidade contemporânea, uma chaga na carne de Cristo».[11]
Nesta perspectiva, desejo convidar cada um, segundo a respectiva missão e responsabilidades particulares, a realizar gestos de fraternidade a bem de quantos são mantidos em estado de servidão. Perguntemo-nos, enquanto comunidade e indivíduo, como nos sentimos interpelados quando, na vida quotidiana, nos encontramos ou lidamos com pessoas que poderiam ser vítimas do tráfico de seres humanos ou, quando temos de comprar, se escolhemos produtos que poderiam razoavelmente resultar da exploração de outras pessoas. Há alguns de nós que, por indiferença, porque distraídos com as preocupações diárias, ou por razões econômicas, fecham os olhos. Outros, pelo contrário, optam por fazer algo de positivo, comprometendo-se nas associações da sociedade civil ou praticando no dia-a-dia pequenos gestos como dirigir uma palavra, trocar um cumprimento, dizer «bom dia» ou oferecer um sorriso; estes gestos, que têm imenso valor e não nos custam nada, podem dar esperança, abrir estradas, mudar a vida a uma pessoa que tateia na invisibilidade e mudar também a nossa vida face a esta realidade.
Temos de reconhecer que estamos perante um fenômeno mundial que excede as competências de uma única comunidade ou nação. Para vencê-lo, é preciso uma mobilização de dimensões comparáveis às do próprio fenômeno. Por esta razão, lanço um veemente apelo a todos os homens e mulheres de boa vontade e a quantos, mesmo nos mais altos níveis das instituições, são testemunhas, de perto ou de longe, do flagelo da escravidão contemporânea, para que não se tornem cúmplices deste mal, não afastem o olhar à vista dos sofrimentos de seus irmãos e irmãs em humanidade, privados de liberdade e dignidade, mas tenham a coragem de tocar a carne sofredora de Cristo,[12] o Qual Se torna visível através dos rostos inumeráveis daqueles a quem Ele mesmo chama os «meus irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40.45).
Sabemos que Deus perguntará a cada um de nós: Que fizeste do teu irmão? (cf. Gen 4, 9-10). A globalização da indiferença, que hoje pesa sobre a vida de tantas irmãs e de tantos irmãos, requer de todos nós que nos façamos artífices de uma globalização da solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança e levá-los a retomar, com coragem, o caminho através dos problemas do nosso tempo e as novas perspectivas que este traz consigo e que Deus coloca nas nossas mãos.
Vaticano, 8 de Dezembro de 2014.

Especialização e Extensão em Sagrada Liturgia


Te Deum


Te Deum é um hino cristão, usado principalmente na liturgia católica, como parte do Ofício de Leituras da Liturgia das Horas e outros eventos solenes de ações de graças. O hino é encontrado também na hinódia ou práticas litúrgicas de outras igrejas cristãs, incluindo o Livro de Oração Comum da Igreja Anglicana, as matinas luteranas e, de modo menos regular, em outras denominações protestantes e evangélicas.
Tradicionalmente, a autoria do hino é atribuída a Santo Ambrósio e a Santo Agostinho, na ocasião do batismo deste último pelo primeiro na catedral de Milão, no ano 387. Algumas correntes o atribuem a Santo Hilário ou, mais recentemente, ao bispo Nicetas de Remesiana.
Das duas primeiras palavras do primeiro verso, "Te Deum laudamos", deriva o nome pelo qual o hino ficou conhecido. O nome latino vem sendo usado designar também suas traduções para os diversos vernáculos, mesmo fora do catolicismo.
Texto em Latim:
Te Deum laudamus: te Dominum confitemur.Te aeternum Patrem omnis terra veneratur.Tibi omnes Angeli; tibi caeli et universae Potestates;Tibi Cherubim et Seraphim incessabili voce proclamant:Sanctus, Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth.Pleni sunt caeli et terra maiestatis gloriae tuae.
Te gloriosus Apostolorum chorus,Te Prophetarum laudabilis numerus,Te Martyrum candidatus laudat exercitus.Te per orbem terrarum sancta confitetur Ecclesia,Patrem immensae maiestatis:
Venerandum tuum verum et unicum Filium;Sanctum quoque Paraclitum Spiritum.
Tu Rex gloriae, Christe.Tu Patris sempiternus es Filius.Tu ad liberandum suscepturus hominem,non horruisti Virginis uterum.
Tu, devicto mortis aculeo,aperuisti credentibus regna caelorum.Tu ad dexteram Dei sedes, in gloria Patris.Iudex crederis esse venturus.

Te ergo quaesumus, tuis famulis subveni:quos pretioso sanguine redemisti.Aeterna fac cum sanctis tuis in gloria numerari.

(Adicionado posteriormente, contendo trechos do Salmos:)
Salvum fac populum tuum, Domine, et benedic hereditati tuae.Et rege eos, et extolle illos usque in aeternum.Per singulos dies benedicimus te;Et laudamus Nomen tuum in saeculum, et in saeculum saeculi.Dignare, Domine, die isto sine peccato nos custodire.Miserere nostri Domine,miserere nostri.Fiat misericordia tua, Domine, super nos,quemadmodum speravimus in te.In te, Domine, speravi: non confundar in aeternum.

Texto em Português


A Vós, ó Deus, louvamos e por Senhor nosso Vos confessamos.
A Vós, ó Eterno Pai, reverencia e adora toda a Terra.
A Vós, todos os Anjos, a Vós, os Céus e todas as Potestades;
A Vós, os Querubins e Serafins com incessantes vozes proclamam:
Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus dos Exércitos!
Os Céus e a Terra estão cheios da vossa glória e majestade.
A Vós, o glorioso coro dos Apóstolos,
A Vós, a respeitável assembleia dos Profetas,
A Vós, o brilhante exército dos mártires engrandece com louvores!
A Vós, Eterno Pai, Deus de imensa majestade,
Ao Vosso verdadeiro e único Filho, digno objecto das nossa a adorações,
Do mesmo modo ao Espírito Santo, nosso consolador e advogado.
Vós sois o Rei da Glória, ó meu Senhor Jesus Cristo!
Vós sois Filho sempiterno do vosso Pai Omnipotente!
Vós, para vos unirdes ao homem e o resgatardes
não Vos dignastes de entrar no casto seio duma Virgem!
Vós, vencedor do estímulo da morte,
abristes aos fiéis o Reino dos Céus,
Vós estais sentado à direita de Deus,
no glorioso trono do vosso Pai!
Nós cremos e confessamos firmemente
que de lá haveis de vir a julgar no fim do mundo.
A Vós portanto rogamos que socorrais os vossos servos
a quem remistes com o Vosso preciosíssimo Sangue.
Fazei que sejamos contados na eterna glória,
entre o número dos Vossos Santos.
Salvai, Senhor, o vosso povo e abençoai a vossa herança,
E regei-os e exaltai-os eternamente para maior glória vossa.
Todos os dias Vos bendizemos
E esperamos glorificar o vosso nome agora e por todos os séculos.
Dignai-Vos, Senhor, conservar-nos neste dia e sempre sem pecado.
Tende compaixão de nós, Senhor,
compadecei-Vos de nós, miseráveis.
Derramai sobre nós, Senhor, a vossa misericórdia,
pois em Vós colocamos toda a nossa esperança.
Em Vós, Senhor, esperei, não serei confundido.



Ano da Vida Consagrada

CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA

E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA

ANO DA VIDA CONSAGRADA

ALEGRAI-VOS
Carta Circular aos Consagrados e Consagradas
Do Magistério do Papa Francisco

« Queria dizer-vos uma palavra, e a palavra é alegria.
Onde quer que haja consagrados, aí está a alegria! 
».
Papa Francisco

Caríssimos Irmãos e Irmãs,
1. «A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Com Jesus Cristo, nasce e renasce sem cessar a alegria » [1].
O início da Evangelii gaudium soa, na linha do magistério do papa Francisco, com surpreendente vitalidade, apelando ao mistério admirável da Boa-Nova que, ao ser acolhida no coração de uma pessoa, transforma a sua vida. É-nos contada a parábola da alegria: o encontro com Jesus acende em nós a beleza originária, a beleza do rosto no qual resplandece a glória do Pai (cf. 2Cor 4, 6), no frutto da alegria.
Esta Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica convida-vos a refletir sobre o tempo de graça que nos é dado viver, sobre o especial convite que o Papa dirige à vida consagrada.
Acolher tal magistério significa renovar a vida segundo o Evangelho, não no sentido de radicalidade entendida como modelo de perfeição e, muitas vezes, de separação, mas no sentido de adesão toto corde [2] ao encontro de salvação que transforma a vida: « Trata-se de deixar tudo para seguir o Senhor. Não, não quero dizer radical. A radicalidade evangélica não é só para os religiosos: a todos se exige. Mas os religiosos seguem o Senhor de modo especial, de modo profético. Espero de vós esse testemunho. Os religiosos devem ser homens e mulheres capazes de despertar o mundo » [3].
Dentro das limitações humanas, nas preocupações do dia a dia, os consagrados e as consagradas vivem a fidelidade, dão razão da alegria que vivem, convertem-se em testemunho luminoso, anúncio eficaz, companhia e proximidade para com as mulheres e homens do nosso tempo que procuram a Igreja como casa paterna [4]. Francisco de Assis, tomando o Evangelho como forma de vida, « fez crescer a fé, renovou a Igreja; e, ao mesmo tempo, renovou a sociedade, tornando-a mais fraterna, mas sempre com o Evangelho, com o testemunho. Pregai sempre o Evangelho e, se for necessário, pregai-o também com as palavras! » [5].
Muitas são as sugestões que nascem da escuta das palavras do Santo Padre, mas interpela-nos particularmente a simplicidade absoluta com a qual o papa Francisco propõe o seu magistério, conformando-se com a genuinidade desarmante do Evangelho. Palavra sine glossa [6], espalhada com o gesto amplo do bom semeador que, cheio de confiança, não faz discriminação de terreno.
Um convite autorizado que nos é dirigido com plena confiança; um convite a renunciarmos às argumentações institucionais e às justificações pessoais; uma palavra provocadora que questiona o nosso viver, por vezes entorpecido e sonolento, e com frequência indiferente ao desafio: « Se tivésseis fé como um grão de mostarda » (Lc 17, 5). Um convite que nos incentiva a elevar o espírito para darmos razão ao Verbo que habita no meio de nós, ao Espírito que cria e renova constantemente a sua Igreja.
Esta Carta surge a partir deste convite e pretende dar início a uma reflexão partilhada, ao mesmo tempo que se apresenta como simples meio para um confronto leal entre o Evangelho e Vida. Este Dicastério desencadeia assim um percurso comum, lugar de reflexão fraterna, pessoal, institucional, rumo a 2015, ano que a Igreja dedica à vida consagrada. Alimentamos o desejo de que ousadas decisões evangélicas venham a ser postuladas e se produzam frutos de renovação e de fecunda alegria: «O primado de Deus é, para a existência humana, plenitude de significado e de alegria, porque o ser humano é feito para Deus e não descansa enquanto não encontrar nele a paz » [7].

ALEGRAI-VOS, EXULTAI-VOS, REJUBILAI
Alegrai-vos com Jerusalém, rejubilai com ela, vós todos que a amais; regozijai-vos com ela, vós todos que estáveis de luto por ela.
Porque assim diz o Senhor: « Vou fazer com que a paz corra para Jerusalém como um rio, e a riqueza das nações, como uma torrente transbordante. Os seus filhinhos serão levados ao colo e acariciaclos sobre os seus regaços.
Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei: em Jerusalém sereis consolados.
Ao verdes isto, os vossos corações pulsarão de alegria, e os vossos ossos retomarão vigor, como erva fresca. A mão do Senhor manifestar-se-á aos seus servos ».
Isaías 66, 10.12-14
À escuta
2. Com a palavra alegria (em hebraico: s´imh. â/s´amah. , gyl) a Sagrada Escritura pretende exprimir uma série de experiências coletivas e pessoais, particularmente ligadas ao culto religioso e às festas, e destinadas a reconhecer o sentido da presença de Deus na história de Israel.
Na Bíblia, há treze verbos e substantivos diferentes para descrever a alegria de Deus, das pessoas e da própria criação, no diálogo da salvação.
No Antigo Testamento, é nos Salmos e no profeta Isaías que estes termos aparecem mais vezes. Com uma variação linguística criativa e original, surge com frequência o convite à alegria e proclama-se a alegria da proximidade de Deus, alegria por tudo o que Ele criou e fez. Nos Salmos encontramos, centenas de vezes, as expressões mais eficazes para indicar, juntamente com a alegria, quer o fruto da presença benevolente de Deus e os ecos jubilosos que esta provoca, quer a afirmação da grande promessa que ilumina o horizonte futuro do povo. No que diz respeito ao profeta Isaías, a segunda e a terceira partes do seu livro estão, precisamente, ritmadas por esse frequente apelo à alegria, orientado para o futuro: será superabundante (cf. Is 9, 2); o céu, o deserto e a terra exultarão de alegria (Is 35, 1; 44, 23; 49, 13); os prisioneiros libertados chegarão a Jerusalém, gritando de alegria (Is 35,9s.; 51, 11).
No Novo Testamento, o termo mais frequente está ligado à raiz char (chàireincharà), mas também se encontram outros termos como agalliáomaieuphrosy´ne, que geralmente comportam um júbilo total, abarcando simultaneamente o passado e o futuro. A alegria é o dom messiânico por excelência, como o próprio Jesus promete: «A minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja completa » (Jo 15, 11; 16, 24; 17, 13). Lucas, a partir dos acontecimentos que antecedem o nascimento do Salvador, assinala o jubiloso difundir-se da alegria (cf. Lc 1, 14.44.47; 2, 10; cf. Mt 2, 10). Esta acompanha a difusão da Boa-Nova como um efeito que se expande (cf. Lc 10, 17; 24, 41.52) e que é sinal típico da presença e implantação do Reino (cf. Lc 15, 7.10.32; At 8, 39; 11, 23; 15, 3; 16, 34; cf. Rm 15, 10-13; etc.).
Para Paulo, a alegria é um fruto do Espírito (cf. Gl 5, 22) e uma nota típica e estável do Reino (cf. Rm 14, 17), que se consolida também através da tribulação e das provas (cf. 1Ts 1, 6). Na oração, na caridade, na constante ação de graças deve encontrar-se a fonte da alegria (cf. 1Ts 5, 16; Fl 3, 1; Cl 1,11s.): nas tribulações, o Apóstolo dos Gentios sente-se cheio de alegria e participante da glória que todos esperamos (cf. 2Cor 6, 10; 7, 4; Cl 1, 24). O triunfo final de Deus e as núpcias do Cordeiro completarão toda a alegria e júbilo (cf. Ap 19, 7), fazendo estalar um Aleluia cósmico (Ap 19, 6).
Vejamos o sentido do texto: « Alegrai-vos com Jerusalém; rejubilai com ela, vós todos que a amais. Regozijai-vos com ela » (Is 66, 10). Trata-se do final da terceira parte do profeta Isaías; os capítulos 65 e 66 de Isaías estão intimamente unidos, completando-se mutuamente, como era evidente já na conclusão da segunda parte de Isaías (capítulos 54 e 55).
Em ambos os capítulos é evocado o passado, por vezes até com imagens cruas: são um convite a esquecê-lo, porque Deus quer fazer brilhar uma nova luz, uma confiança que curará infidelidades e crueldades sofridas. A maldição, fruto da não observância da Aliança, desaparecerá, porque Deus quer fazer de « Jerusalém um motivo de júbilo, e do seu povo uma fonte de alegria » (cf. Is 65, 18). Saberão por experiência que a resposta de Deus virá ainda antes de a súplica ser formulada (cf. Is 65, 24). Este é o contexto que continuará também nos primeiros versículos de Isaías 66, aflorando aqui e além, e evidenciando obtusidade de coração e de ouvidos perante a bondade do Senhor e a sua Palavra de esperança.
É muito sugestiva a imagem de Jerusalém mãe, inspirada nas promessas de Isaías 49, 18-29 e 54, 1-3: a terra de Judá enche-se com os que regressam da dispersão, depois da humilhação. Dir-se-ia que os rumores da « libertação » « engravidaram » Sião de nova vida e esperança. Deus, o Senhor da vida, levará até ao fim a gestação, fazendo nascer sem sofrimento os novos filhos. Assim, Sião-mãe fica rodeada de novos filhos, amamentando-os a todos com abundância e ternura. Uma imagem dulcíssima, fascinante para Santa Teresa de Lisieux, que nela encontrou uma decisiva chave de interpretação da sua espiritualidade [8].
Um conjunto de vocábulos intensos: alegrai-vos, exultaitransbordai; e tambémconsolações, delíciaabundânciaprosperidadecarícias, etc. A relação de fidelidade e de amor tinha falhado, caíra-se na tristeza e na esterilidade; agora, o poder e a santidade de Deus tornavam a dar sentido e plenitude de vida e de felicidade. Estas exprimem-se em termos que têm a sua raiz nos afetos de todo o ser humano, e que provocam sensações únicas de ternura e segurança.
Delicado e verdadeiro perfil de um Deus que vibra com entranhas maternas e com intensas emoções contagiantes; uma alegria vinda do coração (cf. Is 66, 14) que, a partir de Deus – rosto materno e braço que ergue –, e se difunde num povo desfigurado por mil humilhações, e, por isso, com ossos frágeis; uma transformação gratuita que festivamente se estende a « novos céus e nova terra » (cf. Is 66, 22), para que todos os povos conheçam a glória do Senhor, fiel e redentor.
Esta é a beleza
3. « Esta é a beleza da consagração: é a alegria, a alegria... » [9]. A alegria de levar a todos a consolação de Deus. São palavras do papa Francisco no encontro com os seminaristas, os noviços e noviças. « Não há santidade na tristeza » [10], continua o Santo Padre, « não andeis tristes como os que não têm esperança », escrevia São Paulo (1Ts 4, 13).
A alegria não é um adorno inútil, mas exigência e fundamento da vida humana. Nas preocupações de cada dia, todo o homem e mulher procura alcançar a alegria e permanecer nela com todo o seu ser.
No mundo há, muitas vezes, um déficit de alegria. Não somos chamados a realizar gestos épicos nem a proclamar palavras altissonantes, mas a testemunhar a alegria que brota da certeza de sentir-se amado, da confiança de ser salvo.
A nossa memória curta e a nossa experiência fraca impedem-nos muitas vezes de procurar as « terras da alegria », onde saborear o reflexo de Deus. Temos mil e um motivos para viver na alegria. A sua raiz alimenta-se da escuta crente e perseverante da Palavra de Deus. Na escola do Mestre, escuta-se o « esteja em vós a minha alegria e a vossa alegria seja completa » (Jo15, 11), e treinamo-nos com exercícios de alegria perfeita.
«A tristeza e o medo devem dar lugar à alegria: “Alegrai-vos... exultai... transbordai de alegria” – diz o profeta (66, 10). É um grande convite à alegria. […] Cada cristão, mas sobretudo nós, somos chamados a levar esta mensagem de esperança, que dá serenidade e alegria: a consolação de Deus, a sua ternura para com todos. Mas só o poderemos fazer, se experimentarmos, nós primeiro, a alegria de ser consolados por Ele, de ser amados por Ele. […] Existem pessoas consagradas que têm medo da consolação de Deus e se amofinam, porque têm medo dessa ternura de Deus. Mas não tenhais medo. Não tenhais medo. O nosso Deus é o Senhor da consolação, o Senhor da ternura. O Senhor é pai e Ele disse que procederá conosco como faz uma mãe com o seu filho – com ternura. Não tenhais medo da consolação do Senhor » [11].
Ao chamar-vos
4. «Ao chamar-vos, Deus diz-vos: “És importante para mim, Eu amo-te; conto contigo”. Jesus diz isto a cada um de nós! Daqui nasce a alegria! A alegria do momento no qual Jesus olhou para mim. Compreender e sentir isto é o segredo da nossa alegria. Sentir-se amado por Deus, sentir que, para Ele, nós não somos números, mas pessoas; e sentir que é Ele que nos chama » [12].
O papa Francisco leva-nos a olhar para o fundamento espiritual da nossa humanidade, para vermos o que nos é dado gratuitamente por livre soberania divina e livre resposta humana:
« Então Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu: “Falta-te apenas uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me” » (Mc 10, 21).
O Papa faz memória: «Na Última Ceia, Jesus dirige-se aos Apóstolos com estas palavras:
“Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi” (Jo 15, 16); estas palavras recordam a todos, não só a nós sacerdotes, que a vocação é sempre uma iniciativa de Deus. Foi Cristo que vos chamou a segui-lo na vida consagrada, e isto significa realizar constantemente um “êxodo” de vós mesmos para centrardes a vossa existência em Cristo e no seu Evangelho, na vontade de Deus, despojando-vos dos vossos projetos, a fim de poderdes afirmar com São Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20) » [13].
O Papa convida-nos a uma peregrinação ao passado, um caminho sapiencial para nos encontrarmos nas estradas da Palestina ou junto da barca do humilde pescador da Galileia; convida-nos a contemplar os inícios de um caminho, ou melhor, de um acontecimento que, tendo sido inaugurado por Cristo, nos leva a deixar as redes na margem, o banco dos impostos na beira da estrada, as veleidades do zelote entre as intenções do passado. Todos meios desapropriados para estar com Ele.
Convida-nos a parar algum tempo, como peregrinação interior, diante do horizonte da primeira hora, onde os espaços têm o calor da relação amiga, a inteligência é levada a abrir-se ao mistério, a decisão estabelece que é bom pôr-se no seguimento daquele Mestre que só tem « palavras de vida eterna » (cf. Jo 6, 68). Convida-nos a fazer de toda a « existência uma peregrinação de transformação no amor » [14].
O papa Francisco chama-nos a deter o nosso espírito no fotograma da partida: «A alegria do momento no qual Jesus olhou para mim» [15]; a evocar significados e exigências subentendidos na nossa vocação: «É a resposta a um chamamento, a um chamamento de amor » [16]. Estar com Cristo requer que partilhemos com Ele a vida, opções, obediência de fé, bem-aventurança dos pobres, radicalidade do amor.
Trata-se de renascer vocacionalmente. « Convido todo o cristão […] a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de o procurar dia a dia sem cessar » [17].
Paulo leva-nos a essa visão fundamental: « Ninguém pode pôr outro alicerce diferente do que já foi posto » (1Cor 3, 11). O termo vocação indica este dado gratuito, como um depósito de vida que não cessa de renovar a humanidade e a Igreja no mais profundo do seu ser.
Na experiência da vocação, o próprio Deus é o sujeito misterioso do chamamento. Ouvimos uma voz que nos chama à vida e ao discipulado pelo Reino. O papa Francisco, ao recordá-lo – « tu és importante para mim» –, usa o discurso direto, na primeira pessoa, de modo a que a consciência desperta. Chama-me a ser consciente da minha ideia, do meu juízo, para pedir comportamentos coerentes com a consciência de mim próprio, com o chamamento que sinto, o meu chamamento pessoal: « Gostaria de dizer a quantos se sentem indiferentes a Deus, à fé; a quantos estão distantes de Deus, ou a quem o abandonou; também a nós, com as nossas “distâncias” e os nossos “abandonos” de Deus, talvez pequenos, mas demasiado frequentes na vida quotidiana: Olha no fundo do teu coração, olha no íntimo de ti mesmo e interroga-te: tens um coração que aspira a algo de grande, ou um coração entorpecido pelas coisas? O teu coração conservou a inquietação da procura, ou permitiste que ele fosse sufocado pelos bens que, no fim, o atrofiam? » [18].
A relação com Jesus Cristo precisa de ser alimentada com a inquietação da procura; torna-nos conscientes da gratuidade do dom da vocação e ajuda-nos a justificar as razões que levaram à opção inicial, e que permanecem na perseverança: « Deixar-se conquistar por Cristo significa estar sempre orientado para aquilo que está à minha frente, rumo à meta que é Cristo (cf. Fl 3, 14) » [19]. Permanecer constantemente à escuta de Deus requer que estas perguntas se tornem as coordenadas que marcam o nosso tempo quotidiano.
Este mistério indizível que trazemos dentro de nós e que participa do inefável mistério de Deus só pode ser interpretado à luz da fé: «A fé é a resposta a uma Palavra que interpela pessoalmente, a um Tu que nos chama pelo nome » [20] e, « enquanto resposta a uma Palavra que precede, será sempre um ato de memória; contudo, esta memória não o fixa no passado, porque, sendo memória de uma promessa, torna-se capaz de se abrir ao futuro, de iluminar os passos ao longo do caminho » [21]. «A fé contém precisamente a memória da história de Deus conosco; a memória do encontro com Deus, que toma a iniciativa, que cria e salva, que nos transforma; a fé é memória da sua Palavra que inflama o coração, das suas ações salvíficas, pelas quais nos dá vida, purifica, cuida de nós e alimenta. […] Quem traz em si a memória de Deus, deixa-se guiar pela memória de Deus em toda a sua vida, e sabe despertá-la no coração dos outros » [22]. Memória de ser chamado aqui e agora.
Encontrados, alcançados, transformados
5. O Papa pede-nos para relermos a nossa história pessoal e a verificarmos no olhar de amor de Deus, porque, se a vocação é sempre iniciativa sua, cabe-nos a livre adesão à economia divino-humana, como relação de vida no ágape, caminho de discipulado, « luz no caminho da Igreja » [23]. Na vida no Espírito não há tempos acabados; ela abre-se constantemente ao mistério quando faz discernimento para conhecer o Senhor e captar a realidade a partir dele. Ao chamar-nos, Deus faz-nos entrar no seu repouso e pede-nos que repousemos nele, como contínuo processo de conhecimento de amor. Ecoa em nós a Palavra « andas inquieta e preocupada com muitas coisas » (Lc 10, 41). Na via amoris [24] progride-se renascendo: a velha criatura renasce para uma nova forma. « Por isso, se alguém está em Cristo, é uma nova criatura » (2Cor 5, 17).
O papa Francisco dá um nome a este renascer: « Esta estrada tem um nome, um semblante: o rosto de Jesus Cristo. É Ele que nos ensina a tornarmo-nos santos. É Ele que, no Evangelho, nos indica o caminho: a via das bem-aventuranças (cf. Mt 5, 1-12). Esta é a vida dos Santos: pessoas que, por amor a Deus, na sua vida não lhe puseram condições » [25].
A vida consagrada é chamada a encarnar a Boa-Nova, no seguimento de Cristo, o Crucificado ressuscitado; a fazer próprio o « modo de existir e de agir de Jesus como Verbo encarnado em relação ao Pai e aos irmãos » [26]. Concretamente, é assumir o seu estilo de vida, adotar as suas atitudes interiores, deixar-se invadir pelo seu espírito, assimilar a sua lógica surpreendente e a sua escala de valores, partilhar os seus risos e as suas esperanças: « Guiados pela certeza humilde e feliz de quem foi encontrado, alcançado e transformado pela Verdade que é Cristo, e não pode deixar de anunciá-la » [27].
O permanecer em Cristo permite-nos colher a presença do Mistério que habita em nós e nos dilatar o coração segundo a medida do seu coração de Filho. Quem permanece no seu amor, como o ramo ligado à videira (cf. Jo 15, 1-8), entra na familiaridade com Cristo e produz fruto: « Permanecer em Jesus! Permanecer ligado a Ele, dentro dele, com Ele, falando com Ele » [28].
« Cristo é o selo na fronte, é o selo no coração: na fronte, porque o professamos sempre; no coração, porque o amamos sempre; é o selo no braço, porque atuamos sempre » [29]. A vida consagrada, com efeito, é um constante chamamento a seguir Cristo e a imitá-lo. « Toda a vida de Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os seus gestos, a sua coerência, a sua generosidade simples e quotidiana e, finalmente, a sua total entrega, tudo é precioso e fala à nossa vida pessoal » [30].
O encontro com o Senhor põe-nos em movimento, impele-nos a sair da autorreferencialidade[31]. A relação com o Senhor não é estática nem intimista: «Quem coloca Cristo no centro da sua vida, descentraliza-se! Quanto mais te unes a Jesus e mais Ele se torna o centro da tua vida, tanto mais Ele te faz sair de ti mesmo, te descentraliza e abre aos outros » [32]. « Não estamos no centro; estamos, por assim dizer, “deslocados”, estamos ao serviço de Cristo e da Igreja » [33].
A vida cristã é determinada por verbos de movimento, mesmo quando vivida na dimensão monástica e contemplativo-claustral; é uma contínua procura.
« Não se pode perseverar numa evangelização cheia de ardor, se não se estiver convencido, por experiência própria, de que não é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não o conhecer; não é a mesma coisa caminhar com Ele ou caminhar tateando; não é a mesma coisa poder escutá-lo ou ignorar a sua Palavra; não é a mesma coisa poder contemplá-lo, adorá-lo, descansar nele, ou não o poder fazer. Não é a mesma coisa procurar construir o mundo com o seu Evangelho, em vez de o fazer unicamente com a própria razão. Sabemos bem que a vida com Jesus se torna muito mais plena, e, com Ele, é mais fácil encontrar sentido para cada coisa » [34].
O papa Francisco exorta-nos à inquietação da procura, como aconteceu com Agostinho de Hipona: uma « inquietação do coração que o leva ao encontro pessoal com Cristo; que o leva a compreender que aquele Deus que ele procurava longe de si é o Deus próximo de cada ser humano, o Deus próximo do nosso coração, mais íntimo a nós do que nós mesmos ». É uma procura que continua: « Agostinho não se detém, não se acomoda, não se fecha em si mesmo, como aquele que já chegou à meta, mas continua o caminho. A inquietação da busca da verdade, da busca de Deus, torna-se inquietação de o conhecer cada vez mais e de sair de si mesmo para o dar a conhecer aos outros. É precisamente a inquietação do amor » [35].
Na alegria do sim fiel
6. Quem encontrou o Senhor e o segue com fidelidade é um mensageiro da alegria do Espírito.
« Só graças a esse encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos resgatados da nossa consciência isolada e da autorreferencialidade » [36]. Quem é chamado é convocado para si mesmo, isto é, para o seu poder ser. Talvez possamos dizer que a crise da vida consagrada passa também pela incapacidade de reconhecer esse profundo chamamento, mesmo naqueles que já vivem essa vocação.
Vivemos uma crise de fidelidade, entendida como adesão consciente a um chamamento que é um percurso, um caminho, desde o seu início misterioso até ao seu misterioso fim.
Talvez se esteja também numa crise de humanização. Estamos a viver os limites de uma coerência total, feridos pela incapacidade de realizar, no tempo, a nossa vida como vocação unitária e caminho fiel.
Um caminho quotidiano, pessoal e fraterno, marcado pelo descontentamento, pela amargura que nos fecha na tristeza, como que numa permanente saudade, por estradas inexploradas e sonhos por realizar, torna-se um caminho solitário. A nossa vida, chamada à relação na construção do amor, pode transformar-se numa charneca desabitada. Somos convidados, em qualquer idade, a revisitar o centro profundo da vida pessoal, onde encontram significado e verdade as motivações do nosso viver com o Mestre, discípulos e discípulas do Mestre.
A fidelidade é consciência do amor que nos orienta para o Tu de Deus e para qualquer outra pessoa, de maneira constante e dinâmica, enquanto sentimos em nós a vida do Ressuscitado:
«Os que se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento » [37].
O discipulado fiel é graça e exercício de amor, exercício de caridade oblativa: « Quando caminhamos sem a Cruz, quando edificamos sem a Cruz ou confessamos um Cristo sem Cruz, não somos discípulos do Senhor: somos mundanos, somos bispos, padres, cardeais, papas, mas não discípulos do Senhor » [38].
Perseverar até ao Gólgota, sentir as dilacerações das dúvidas e do renegar, alegrar-se com a maravilha e com a estupefação da Páscoa até à manifestação do Pentecostes e à evangelização aos povos, são etapas da fidelidade alegre porque quenótica, vivida durante a vida inteira, mesmo na prova do martírio e, ao mesmo tempo, participante da vida ressuscitada de Cristo: «É da Cruz, supremo ato de misericórdia e de amor, que se renasce como nova criatura (Gl 6, 15) » [39].
No lugar teologal em que Deus, revelando-se, nos revela a nós mesmos, o Senhor pede-nos, portanto, para voltarmos a procurar, fides quaerens: « Procura a justiça, a fé, o amor e a paz com todos os que, de coração puro, invocam o Senhor » (2Tm 2, 22).
A peregrinação interior começa na oração: «A primeira coisa necessária para um discípulo é estar com o Mestre, ouvi-lo, aprender dele. E isto é sempre válido, é um caminho que dura a vida inteira. […] Se, no nosso coração, não há o calor de Deus, do seu amor, da sua ternura, como podemos nós, pobres pecadores, inflamar o coração dos outros? » [40]. Este itinerário dura a vida inteira, enquanto o Espírito Santo, na humildade da oração, nos convence do senhorio de Cristo em nós: « Todos os dias, o Senhor chamanos a segui-lo, corajosa e fielmente; fez-nos o grande dom de nos escolher como seus discípulos; convida-nos a anunciá-lo jubilosamente como o Ressuscitado, mas pede-nos para o fazermos, no dia a dia, com a palavra e o testemunho da nossa vida, no quotidiano. O Senhor é o único, o único Deus da nossa vida e convida-nos a despojar-nos dos numerosos ídolos e adorá-lo só a Ele »[41].
O Papa apresenta a oração como a fonte da fecundidade missionária: « Cultivemos a dimensão contemplativa, mesmo no turbilhão dos compromissos mais urgentes e pesados. E quanto mais a missão vos chamar para irdes às periferias existenciais, tanto mais o vosso coração se mantenha unido ao de Cristo, cheio de misericórdia e de amor » [42].
O estar com Jesus leva a ter um olhar contemplativo da história, para vermos e escutarmos em toda a parte a presença do Espírito e, de forma privilegiada, discernirmos a sua presença, a fim de vivermos o tempo como tempo de Deus.
Quando falta um olhar de fé, « a vida perde gradualmente sentido, o rosto dos irmãos torna-se opaco, impossibilitando descobrir nele o rosto de Cristo; os acontecimentos da história tornam-se ambíguos, senão mesmo vazios de esperança» [43].
A contemplação abre-nos à atitude profética. O profeta é um homem « que tem os olhos penetrantes e que escuta e diz as palavras de Deus; […] um homem de três tempos: promessa do passado, contemplação do presente, coragem para indicar o caminho do futuro » [44].
Por fim, a fidelidade no discipulado passa e é comprovada pela experiência da fraternidade, lugar teológico, no qual somos chamados a apoiar-nos no sim jubiloso do Evangelho: «É a Palavra de Deus que suscita a fé, que a alimenta e regenera. É a Palavra de Deus que sensibiliza os corações, que os converte a Deus e à sua lógica, que é tão diferente da nossa; é a Palavra de Deus que renova continuamente as nossas comunidades » [45].
O Papa convida-nos, portanto, a renovar e qualificar com alegria e paixão a nossa vocação, porque o ato totalizante do amor é um processo constante: « Amadurece, amadurece, amadurece » [46], num progresso permanente em que o sim da nossa vontade à Sua une vontade, intelecto e sentimento. «O amor nunca está “concluído” e completado; transforma-se ao longo da vida, amadurece e, por isso mesmo, permanece fiel a si próprio » [47].

CONSOLAI, CONSOLAI O MEU POVO

Consolai, consolai o meu povo,
diz o vosso Deus.
Falai ao coração de Jerusalém.
Isaías 40, 1-2
À escuta
7. Com uma peculiaridade estilística, que voltará a encontrar-se mais adiante (cf. Is 51, 17; 52, 1: « Desperta, desperta! »), os oráculos da segunda parte de Isaías (40-55) lançam o apelo a ir em ajuda de Israel exilado, que tende a fechar-se no vazio de uma memória falhada. O contexto histórico pertence claramente à fase do prolongado exílio do povo em Babilónia (587-538 a.C.), com toda a consequente humilhação e o sentido de impotência daí resultante. Todavia, a desagregação do Império Assírio sob a pressão da nova potência emergente, a persa, guiada pelo astro nascente que era Ciro, leva o profeta a intuir que poderia vir daí uma libertação inesperada; o que, de facto, sucederá. O profeta, sob a inspiração de Deus, dá voz pública a essa possibilidade, interpretando os movimentos políticos e militares como ação guiada misteriosamente por Deus através de Ciro, e proclama que a libertação está próxima e o regresso à terra dos pais está iminente.
As palavras que Isaías emprega – consolai... falai ao coração – encontram-se com uma certa frequência no Antigo Testamento; têm especial relevância as passagens onde se encontram diálogos de ternura e afeto. Como quando Rute reconhece que Booz « a consolou e lhe falou ao coração » cf. Rt 2, 12); ou então, na famosa página ele Oséias, que diz à sua esposa (Gomer) querer atraí-la ao deserto para lhe « falar ao coração » (cf. Os 2, 16-17), em ordem a uma nova estação de fidelidade. Mas também há outros paralelismos semelhantes, como o diálogo de Siquém, filho de Hamor, enamorado de Dina (cf. Gn 34, 1-5) ou o do levita de Efraim, que fala à concubina que o abandonou (cf. Jz 19, 3).
Trata-se, portanto, de uma linguagem que deve ser interpretada no contexto do amor, e não do encorajamento; portanto, ação e palavra ao mesmo tempo delicadas e encorajadoras, mas que aludem aos laços afetivos e intensos de Deus, « esposo » de Israel. E a consolação deve ser epifania de uma pertença recíproca, jogo de intensa empatia, de comoção e ligação vital.
Não são, portanto, palavras superficiais e adoçadas, mas Misericórdia e visceralidade, preocupação, abraço que fortalece e paciente proximidade para reencontrar as estradas da confiança.
Levar o abraço de Deus
8. « Hoje, as pessoas precisam certamente de palavras, mas sobretudo têm necessidade de quem testemunhe a misericórdia, a ternura do Senhor que aquece o coração, desperta a esperança, atrai para o bem. A alegria de levar a consolação de Deus! » [48].
O papa Francisco confia aos consagrados e consagradas essa missão: encontrar o Senhor que nos consola como uma mãe, e consola o povo de Deus. Da alegria do encontro com o Senhor e do seu chamamento brota o serviço na Igreja, a missão: levar aos homens e mulheres do nosso tempo a consolação de Deus; testemunhar a sua misericórdia [49].
Na visão de Jesus, a consolação é dom do Espírito, o Paráclito, o Consolador que nos consola nas provas e acende uma esperança que não desilude. Assim, a consolação cristã torna-se conforto, encorajamento, esperança: é presença operante do Espírito (cf. Jo 14, 16-17), fruto do Espírito, e o «fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança » (Gl 5, 22).
Num mundo que vive de desconfiança, de desânimo e depressão, numa cultura em que os homens e mulheres se deixam levar por fragilidades e fraquezas, por individualismos e interesses pessoais, é-nos pedido que introduzamos a confiança na possibilidade de uma felicidade verdadeira, de uma esperança possível, que não se apoie unicamente nos talentos, nas qualidades, no saber, mas em Deus. Todos podem encontrá-lo; basta procurá-lo de coração sincero.
Os homens e mulheres do nosso tempo esperam palavras de consolação, proximidade, perdão, alegria verdadeira. Somos chamados a levar a todos o abraço de Deus, que se inclina sobre nós com ternura de mãe: consagrados, sinal de humanidade plena, facilitadores e não controladores da graça [50], marcados pelo sinal da consolação.
A ternura faz-nos bem
9. Testemunhas de comunhão para além das nossas maneiras de ver e dos nossos limites, somos, portanto, chamados a levar o sorriso de Deus; e a fraternidade é o primeiro e mais credível Evangelho que podemos contar. Pede-se-nos para humanizar as nossas comunidades: « Cuidai da amizade entre vós, da vida de família, do amor entre vós. E que o mosteiro não seja um purgatório, mas uma família. Os problemas existem e existirão, mas como se faz numa família, com amor, procurai uma solução com caridade; não destruais esta em nome daquela; que não haja competição. Cuidai da vida de comunidade, pois quando a vida de comunidade é vida de família, o Espírito Santo encontra-se no seio da comunidade. Sempre com um coração grande. Deixai passar, não vos vanglorieis, suportai tudo, sorri com o coração. E o sinal disto é a alegria » [51].
A alegria consolida-se na experiência da fraternidade, qual lugar teológico, onde cada um é responsável da fidelidade ao Evangelho e do crescimento de cada um. Quando uma fraternidade se alimenta do mesmo Corpo e Sangue de Jesus, reúne-se à volta do Filho de Deus para partilhar o caminho de fé guiado pela Palavra, torna-se uma só coisa com Ele; é uma fraternidade em comunhão, que sente o amor gratuito e vive em festa, livre, alegre, cheia de coragem.
«Uma fraternidade sem alegria é uma fraternidade que se apaga. […] Uma fraternidade rica de alegria é um verdadeiro dom do Alto para os irmãos que sabem pedi-lo e que sabem aceitar-se uns aos outros, empenhando-se na vida fraterna com confiança na ação do Espírito » [52].
No tempo em que a fragmentação leva a um individualismo estéril e de massa, e a fraqueza das relações desagrega e asfixia a atenção pelo humano, somos convidados a humanizar as relações de fraternidade para favorecer a comunhão dos espíritos e dos corações ao estilo do Evangelho, porque « existe uma comunhão de vida entre todos aqueles que pertencem a Cristo. Uma comunhão que nasce da fé » e que faz da « Igreja, na sua verdade mais profunda, comunhão com Deus, familiaridade com Deus, comunhão de amor com Cristo e com o Pai no Espírito Santo, que se prolonga numa comunhão Fraterna » [53].
Para o papa Francisco, o selo da fraternidade é a ternura, uma « ternura eucarística », porque « a ternura faz-nos bem ». A fraternidade tem « uma enorme força de convocação. […] A fraternidade religiosa, mesmo com todas as diferenças possíveis, é uma experiência de amor que ultrapassa os conflitos » [54].
A proximidade como companhia
10. Somos chamados a realizar um êxodo de nós mesmos, num caminho de adoração e de serviço [55]. « Sair pela porta para procurar e encontrar! Ter a coragem de ir contra a corrente dessa cultura eficientista, dessa cultura da rejeição. O encontro e o acolhimento de todos, a solidariedade e a fraternidade, são os elementos que tornam a nossa civilização verdadeiramente humana. Temos de ser servidores da comunhão e da cultura do encontro! Quero-vos quase obsessivos neste aspecto. E fazê-lo sem ser presunçosos » [56].
«O fantasma que se deve combater é a imagem da vida religiosa entendida como refúgio e conforto face a um mundo exterior difícil e complexo » [57]. O Papa exorta-nos a « sair do ninho » [58], para habitarmos na vida dos homens e mulheres do nosso tempo, e a nos entregarmos a Deus e ao próximo.
«A alegria nasce da gratuidade de um encontro! […] E a alegria do encontro com Ele e do seu chamamento faz com que não nos fechemos, mas que nos abramos; leva ao serviço na Igreja. São Tomás dizia: “Bonum est diffusivum sui” (o bem difunde-se). E a alegria também se difunde. Não tenhais medo de mostrar a alegria de haverdes respondido ao chamamento do Senhor, à sua escolha de amor, e de testemunhar o seu Evangelho no serviço à Igreja. E a alegria, a verdadeira alegria, é contagiosa; contagia... faz-nos ir em frente » [59].
Perante o testemunho contagioso de alegria, de serenidade, de fecundidade, o testemunho da ternura e do amor, da caridade humilde, sem prepotência, muitos sentem a necessidade de vir ver [60].
Várias vezes o papa Francisco indicou o caminho da atração, do contágio, como caminho para fazer crescer a Igreja, caminho da nova evangelização. «A Igreja deve atrair. Despertai o mundo! Sede testemunhas de um modo diferente de fazer, de agir, de viver! É possível viver diversamente neste mundo. […] Eu espero de vós um tal testemunho » [61].
Confiando-nos a missão de despertar o mundo, o Papa impele-nos a encontrar as histórias dos homens e mulheres de hoje à luz de duas categorias pastorais, que têm as suas raízes na novidade do Evangelho: a proximidade e o encontro, duas modalidades, através das quais o próprio Deus se revelou na história a ponto de encarnar.
Na estrada de Emaús, como Jesus com os discípulos, acolhamos na companhia quotidiana as alegrias e dores das pessoas, dando « calor ao coração » [62], esperando com ternura os cansados, os fracos, para que o caminho feito em comum tenha em Cristo luz e significado.
O nosso caminho « amadurece até à paternidade pastoral, até à maternidade pastoral e, quando um sacerdote não é pai da sua comunidade, quando uma religiosa não é mãe de todos aqueles com os quais trabalha, torna-se triste. Eis o problema. Por isso vos digo: a raiz da tristeza na vida pastoral consiste precisamente na falta de paternidade e maternidade, que vem do viver mal esta consagração; esta, pelo contrário, deve-nos conduzir à fecundidade »[63].
A inquietação do amor
11. Ícones vivos da maternidade e da proximidade da Igreja, vamos ao encontro dos que esperam a Palavra da consolação, inclinando-nos com amor materno e espírito paterno sobre os pobres e os fracos.
O Papa convida-nos a não privatizar o amor, mas, com a inquietação de quem procura, « procurar sempre, sem tréguas, o bem do outro, da pessoa amada » [64].
A crise de sentido do homem moderno e a crise económica e moral da sociedade ocidental e das suas instituições não são um acontecimento passageiro dos tempos em que vivemos, mas desenham um momento histórico de excepcional importância. Somos chamados então, como Igreja, a sair para ir às periferias geográficas, urbanas e existenciais – as do mistério do pecado, da dor, das injustiças, da miséria –, aos lugares recônditos da alma, onde cada pessoa experimenta a alegria e o sofrimento do viver [65].
« Vivemos numa cultura do desencontro, uma cultura da fragmentação, uma cultura na qual o que não me serve é jogado fora […]. Hoje, encontrar um sem-abrigo morto de frio não é notícia ». «A pobreza é uma categoria teologal porque o Filho de Deus humilhou-se, para caminhar pelas estradas. […] Uma Igreja pobre para os pobres começa por dirigir-se à carne de Cristo. Se nos fixarmos na carne de Cristo, começamos a compreender qualquer coisa, a compreender o que é esta pobreza, a pobreza do Senhor » [66]. Viver a bem-aventurança dos pobres significa ser sinal de que a angústia da solidão e do limite é vencida pela alegria de quem é verdadeiramente livre em Cristo e aprendeu a amar.
Durante a sua visita pastoral a Assis, o papa Francisco perguntava de que devia despojar-se a Igreja. E respondia: «De qualquer ação que não é para Deus, que não é de Deus; do medo de abrir as portas para ir ao encontro de todos, sobretudo dos mais pobres, dos necessitados, dos distantes, sem esperar; certamente, não para se perder no naufrágio do mundo, mas para levar com coragem a luz de Cristo, a luz do Evangelho, também à escuridão, aonde não se vê, aonde pode acontecer que se tropece; despojar-se da tranquilidade aparente que as estruturas oferecem, estruturas certamente necessárias e importantes, mas que nunca devem obscurecer a única verdadeira força que a Igreja tem em si: Deus. Ele é a nossa força! » [67].
Eis um convite a « não ter medo da novidade que o Espírito Santo faz em nós, não ter medo da renovação das estruturas. A Igreja é livre. Condu-la o Espírito Santo. É o que Jesus nos ensina no Evangelho: a liberdade necessária para encontrar sempre a novidade do Evangelho na nossa vida e também nas estruturas. A liberdade de escolher odres novos para esta novidade » [68]. Somos convidados a ser homens e mulheres audazes, de fronteira: «A nossa fé não é uma fé-laboratório, mas uma fé-caminho, uma fé histórica. Deus revelou-se como história, não como um compêndio de verdades abstratas. […] Não é preciso levar a fronteira para casa, mas viver na fronteira e ser audazes » [69].
Juntamente com o desafio da bem-aventurança dos pobres, o Papa convida a visitar as  fronteiras do pensamento e da cultura, a favorecer o diálogo, inclusive a nível intelectual, para darmos razão da esperança, na base de critérios éticos e espirituais, interrogando-nos sobre o que é bom. A fé nunca limita o espaço da razão, mas abre-o a uma visão integral do homem e da realidade, e defende do perigo de reduzir o homem a « material humano » [70].
A cultura, chamada a servir constantemente a humanidade em todas as condições, se for autêntica, rasga caminhos inexplorados, passagens que fazem respirar esperança, consolidam o sentido da vida, conservam o bem comum. Um autêntico processo cultural « faz crescer a humanização integral e a cultura do encontro e do relacionamento; este é o modo cristão de promover o bem comum, a alegria de viver. E aqui convergem fé e razão, a dimensão religiosa com os diferentes aspectos da cultura humana: arte, ciência, trabalho, literatura »[71]. Uma autêntica busca cultural encontra a história e abre caminhos para procurar o rosto de Deus.
Os lugares onde se elabora e comunica o saber são também os lugares onde se cria uma cultura da proximidade, do encontro e do diálogo, abaixando as defesas, abrindo as portas, construindo pontes [72].

PARA REFLEXÃO
12. O mundo, como rede global em que todos estamos integrados, onde nenhuma tradição local pode ambicionar ter o monopólio da verdade, onde as tecnologias têm efeitos que atingem a todos, lança um desafio constante ao Evangelho e a quem vive a vida à maneira do Evangelho.
O papa Francisco está a realizar, neste momento histórico, através de opções e modalidades de vida, uma hermenêutica viva do diálogo Deus-mundo. Introduz-nos num estilo de sabedoria, que, radicada no Evangelho e na escatologia do humano, lê o pluralismo, procura o equilíbrio, convida a habilitar a capacidade de ser responsáveis da mudança, para que a verdade do Evangelho seja comunicada cada vez melhor, enquanto nos movemos « por entre as limitações da linguagem e das circunstâncias » [73] e, conscientes destes limites, cada um de nós se torna « fraco com os fracos... tudo para todos » (1Cor 9, 22).
Somos convidados a cultivar uma dinâmica generativa, não simplesmente administrativa, para acolher os acontecimentos espirituais, presentes nas nossas comunidades e no mundo; movimentos e graça, que o Espírito realiza em cada pessoa, vista como pessoa. Somos convidados a empenhar-nos na desestruturação de modelos sem vida para narrar o humano marcado por Cristo e nunca revelado de forma absoluta nas linguagens e nos modos.
O papa Francisco convida-nos a uma sabedoria que seja sinal de uma consistência dúctil, capacidade dos consagrados de se moverem segundo o Evangelho, de atuarem e fazerem escolhas segundo o Evangelho, sem se perderem nas diversas esferas de vida, linguagens, relações e mantendo o sentido da responsabilidade, dos laços que nos ligam, da restrição dos nossos limites, da infinidade das formas como a vida se exprime. Um coração missionário é um coração que conheceu a alegria da salvação de Cristo e partilha-a como consolação no sinal do limite humano: « Sabe que ele mesmo deve crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e assim não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de se sujar com a lama da estrada » [74].
Acolhamos as solicitações que o Papa nos propõe para olhar para nós próprios e para o mundo com os olhos de Cristo, e assim ficar inquietos.
As perguntas do papa Francisco
• Queria dizer-vos uma palavra, e a palavra é alegria. Onde estão os consagrados, os seminaristas, as religiosas e os religiosos, os jovens, há sempre alegria, há sempre júbilo! É a alegria do vigor, é a alegria de seguir Jesus; a alegria que nos dá o Espírito Santo, não a alegria do mundo. Há alegria! Mas, onde nasce a alegria? [75].
• Olha no fundo do teu coração, olha no íntimo de ti mesmo, e interroga-te: tens um coração que aspira a algo de grande ou um coração entorpecido pelas coisas? O teu coração conservou a inquietação da procura ou permitiste que ele fosse sufocado pelos bens, que terminam por atrofiá-lo? Deus espera por ti, procura-te: o que lhe respondes? Apercebeste desta situação da tua alma? Ou dormes? Acreditas que Deus te espera ou, para ti, esta verdade não passa de « palavras »? [76].
• Somos vítimas desta cultura do provisório. Gostaria que pensásseis nisto: como posso ser livre, como posso libertar-me desta cultura do provisório? [77].
• Esta é uma responsabilidade, em primeiro lugar dos adultos, dos formadores: dar um exemplo de coerência aos mais jovens. Queremos jovens coerentes? Sejamos nós coerentes! Caso contrário, o Senhor nos dirá o que dizia dos fariseus ao povo de Deus: « Fazei o que dizem, mas não o que fazem! » Coerência e autenticidade! [78].
• Podemos perguntar-nos: eu vivo inquieto por Deus, por anunciá-lo, por dá-lo a conhecer? Ou então deixo-me fascinar por aquela mundanidade espiritual que leva a fazer tudo por amor-próprio? Nós, consagrados, pensamos nos interesses pessoais, no funcionalismo das obras, no carreirismo. Mas podemos pensar em tantas coisas... Por assim dizer, « acomodei-me » na minha vida cristã, na minha vida sacerdotal, na minha vida religiosa, e até na minha vida de comunidade, ou conservo a força da inquietação por Deus, pela sua Palavra, que me leva a « sair » e ir rumo aos outros? [79].
• Como vivemos a inquietação do amor? Cremos no amor a Deus e ao próximo, ou somos nominalistas a este propósito? Não de modo abstrato, não somente pelas palavras, mas o irmão concreto que encontramos, o irmão que está ao nosso lado! Deixamo-nos inquietar pelas suas necessidades, ou permanecemos fechados em nós mesmos, nas nossas comunidades, que com frequência são para nós « comunidades-comodidades »? [80].
• Este é um bom caminho para a santidade! Não falar mal dos outros. « Mas, padre, há problemas... »: di-lo ao superior, di-lo à superiora, ao bispo, que pode remediar. Não o digas a quem nada pode fazer. Isto é importante: fraternidade! Mas diz-me, tu falarás mal da tua mãe, do teu pai, dos teus irmãos? Nunca. E porque o fazes na vida consagrada, no seminário, na vida presbiteral? Só isto: pensai, pensai... Fraternidade! Este amor fraterno! [81].
• Aos pés da cruz, Maria é a mulher da dor e, ao mesmo tempo, da vigilante espera de um mistério, maior que a dor, que está para se cumprir. Tudo parece realmente acabado; toda a esperança poderíamos dizer que se apagou. Também ela, naquele momento, poderia ter exclamado, recordando as promessas da anunciação: não se cumpriram, fui enganada. Mas não o disse. Contudo ela, bem-aventurada porque acreditou, desta sua fé vê brotar um futuro novo e aguarda com esperança o amanhã de Deus. Às vezes, penso: nós sabemos esperar o amanhã de Deus? Ou queremos o hoje? O amanhã de Deus é para ela o amanhecer da Páscoa, daquele primeiro dia da semana. Far-nos-á bem pensar, em contemplação, no abraço do Filho com a Mãe. A única lâmpada acesa no sepulcro de Jesus é a esperança da Mãe, que naquele momento é a esperança de toda a Humanidade. Pergunto a mim e a vós: nos mosteiros, esta lâmpada ainda está acesa? Nos mosteiros, espera-se o amanhã de Deus? [82].
• A inquietação do amor impele-nos sempre a ir ao encontro do outro, sem esperar que seja o outro a manifestar a sua necessidade. A inquietação do amor oferece-nos a dádiva da fecundidade pastoral, e nós devemos perguntar-nos, cada um de nós: como está a minha fecundidade espiritual, a minha fecundidade pastoral? [83].
• Uma fé autêntica exige sempre um desejo profundo de mudar o mundo. Eis a pergunta que nos devemos fazer: temos também nós grandes visões e estímulos? Somos também nós audazes? O nosso sonho voa alto? O zelo devora-nos (cf. Sl 69, 10), ou somos medíocres e satisfazemo-nos com as nossas programações apostólicas de laboratório? [84].

Ave Maria, Mãe da Alegria
13. « Alegra-te, cheia de graça» (Lc 1, 28). «A saudação do Anjo a Maria constitui um convite à alegria, a um júbilo profundo; anuncia o fim da tristeza […]. Trata-se de uma saudação que marca o início do Evangelho, da Boa-Nova » [85].
Junto a Maria, a alegria expande-se: o Filho que traz no seio é o Deus da alegria, do júbilo que contagia, que envolve. Maria abre de par em par as portas do coração e corre para Isabel.
« Feliz de realizar o seu desejo, delicada no seu dever, solícita na sua alegria, apressou-se a dirigir-se para a montanha. Onde, se não para os cimos, devia solicitamente tender aquela que já estava cheia de Deus? » [86].
Dirige-se « apressadamente » (Lc 1, 39) para levar ao mundo o feliz anúncio, a todos a alegria irreprimível que acolhe no seio: Jesus, o Senhor. Apressadamente: não é apenas a velocidade com que Maria se move. Exprime-nos a sua diligência, a atenção solícita com que enfrenta a viagem, o seu entusiasmo.
« Eis a serva do Senhor » (Lc 1, 38). A serva do Senhor corre apressadamente, para se tornar criada dos seres humanos.
Em Maria, é a Igreja toda que caminha junta: na caridade de quem se move ao encontro daquele que é mais frágil; na esperança de quem sabe que será acompanhado neste seu andar, e na fé de quem tem um dom especial a partilhar.
Em Maria, cada um de nós, levado pelo vento do Espírito, vive a própria vocação a ir!
Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir
com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da Terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.
Mãe do Evangelho vivo,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
Ámen. Aleluia! 
[87]

Roma, 2 de fevereiro de 2014
Festa da Apresentação do Senhor

João Braz Card. de Aviz
Prefeito
José Rodríguez Carballo, O.F.M.
Arcebispo Secretário